
A gente começa o ano como quem começa a ler um romance cujo enredo nos interessa muito por ser a história da nossa própria vida.
Conheço uma cidade azul.
Conheço uma cidade cor de ferrugem.
Na primeira, há helicópteros pairando...
Na segunda, espiam de seus esconderijos os olhos das ratazanas.
No entanto
é a mesma cidade
e,
onde a gente estiver,
será sempre uma alma extraviada em labirintos escusos
ou, então,
uma alma perdida de amor...
Sim! Por ser habitado por almas
é que esse nosso mundo é um mundo mágico...
onde cada coisa – a cada passo que se der
vai mudando de aspecto...
de forma
de cor...
Vai mudando de alma!
Mario Quintana
Certa vez abalancei-me a um trabalho intitulado “Preguiça”. Constava do título e duas belas colunas em branco, com a minha assinatura no fim. Infelizmente não foi aceito pelo supercilioso coordenador da página literária.
Já viram desconfiança igual?
Censurar uma página em branco é o cúmulo da censura.
(Caderno H)
Este poema foi musicado por Lui Coimbra, e está no seu CD "Ouro e Sol".
Vale a pena ouvir.
A foto - Visconde de Mauá - RJ/MG
Tão bom viver dia a dia...
A vida, assim, jamais cansa...
Viver tão só de momentos
Como essas nuvens do céu...
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!....
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas...
Mario Quintana
Há coisas que a minha alma, já tão mortificada, não admite:
assistir novelas de TV
ouvir música POP
um filme apenas de corridas de automóvel
uma corrida de automóvel num filme
um livro de páginas ligadas
porque, sendo bom, a gente abre sofregamente a dedo:
espátulas não há... e quem é que hoje faz questão de virgindades...
E quando minha alma estraçalhada a todo instante pelos telefones
fugir desesperada
me deixarás aqui,
ouvindo o que todos ouvem, bebendo o que todos bebem,
comendo o que todos comem.
A estes, a falta de alma não incomoda. (Desconfio até que minha pobre alma
fora destinada ao habitante de outro mundo).
E ligarei o rádio a todo volume,
Gritarei como um possesso nas partidas de futebol,
Seguirei, irresistivelmente, o desfilar das grandes paradas do Exército.
E apenas sentirei, uma vez que outra,
a vaga nostalgia de não sei que mundo perdido...
Mario Quintana
Cristina Serra: Por que você gosta tanto de escrever à noite?
Quintana: Sou um lobisomem da poesia. Escrevo de meia-noite em diante, até às três ou quatro horas. Às vezes, a poesia vem nas ocasiões mais impróprias e eu tomo nota do relâmpago num papelzinho; outras vezes, me esqueço pelo caminho. Se eu não esqueço, escrevo à noite, no silêncio. À noite, a gente só é visitado por fantasmas e eles são silenciosos...
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Patrícia Bins: O futuro, como o imaginas?
Quintana: O futuro é uma espécie de banco, ao qual vamos remetendo, um por um, os cheques de nossas esperanças. Ora! Não é possível que todos os cheques sejam sem fundos...
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Ivete Brandalise: Mario, este homem que faz poema, que faz música com suas palavras. Que músicas foram incorporadas no seu patrimônio afetivo?
Quintana: Eu não gosto de música só com açúcar. Eu não gosto de música de ópera.
Ivete Brandalise: Por que não?
Quintana: Porque parece namoro de gato, não termina nunca e não deixa a gente dormir.
Ivete Brandalise: Que músicas fazem a tua cabeça?
Quintana: A 4ª sinfonia de Maller, pois ela é uma música angustiada e eu, como todos neste fim-de-século estamos angustiados. Gosto também de “Cânticos Peregrinos", de Wagner e a "Canção dos Barqueiros do Volga".
Ivete Brandalise: Tu falaste na angústia de Maller. Tu achas que a angústia ajuda a criar?
Quintana: A angústia ajuda a criar porque um poema sempre se faz num estado de inquietação, que não deixa de ser angústia. Embora não seja uma angústia de desespero, mas uma angústia que traz esperança.
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JB: Para o senhor qual o valor de um amigo? Um amigo será mesmo um anjo disfarçado de ser humano?
Quintana: Os chatos se dividem em duas categorias: os chatos propriamente ditos e os amigos, que são os nossos chatos prediletos...
JB: Seus poemas nos lembram o garoto sapeca que já fomos um dia, roubando doces das janelas.
Quintana: Doce só é bom mesmo quando é roubado.